Alunos de Português Língua Não Materna - Filhos de um deus menor

Alunos de Português Língua Não Materna - Filhos de um deus menor

Cristina Fontes

 

Em 2007, Pardal et al. diziam que “nas últimas décadas, Portugal, sem ter deixado de ser um país de emigração, passou a ser igualmente um país de imigração” (2007: 63), isto é, tem-se verificado, nos últimos anos, a entrada de um número apreciável de estrangeiros, no nosso país. Parte desses estrangeiros são crianças e jovens em idade escolar que ingressam nas escolas públicas portuguesas.

 

O ensino de Português Língua Não Materna (PLNM) constitui uma das medidas de integração desses alunos no sistema educativo português. Destina-se a alunos vindos do estrangeiro com língua materna que não é nenhuma das variedades do português; filhos de emigrantes portugueses; com crioulo/língua africana como língua materna ou de comunicação e, ainda, alunos com quadro linguístico complexo.

 

Nas Portarias que regulamentam as ofertas educativas do ensino básico (Portaria n.º 223-A/2018), dos cursos científico-humanísticos (Portaria n.º 226-A/2018), dos cursos artísticos especializados de Dança, de Música, de Canto e de Canto Gregoriano (Portaria n.º 229-A/2018), dos cursos artísticos especializados de Design de Comunicação, de Design de Produto, de Produção Artística e de Comunicação Audiovisual (Portaria n.º 232-A/2018) e dos cursos profissionais (Portaria n.º 235-A/2018) existe um artigo (11.º ou 12.º, conforme a Portaria) referente a Português Língua Não Materna.

 

Em todos os documentos supracitados é decretado que “os alunos que sejam posicionados no nível de Iniciação (A1, A2) ou no nível Intermédio (B1) frequentam a disciplina de PLNM como equivalente à disciplina de Português nos termos seguintes: a) Em grupos constituídos, no mínimo, por 10 alunos, podendo, caso tal se revele necessário, ser agrupados alunos dos níveis A1, A2 e B1; b) Na sua turma, nos tempos letivos da disciplina de Português, quando se mostre inviável a aplicação do previsto na alínea anterior.

 

Ora, aqui começam os problemas. Dificilmente, as escolas conseguem criar grupos de 10 alunos aquando da formação de turmas, pois, nessa altura, não se sabe quantos alunos estrangeiros irão frequentar a escola, em que opções ou cursos se irão matricular e em que nível de proficiência linguística irão ser incluídos. Este problema agudiza-se em escolas secundárias, com muitas ofertas formativas, sobretudo de cursos profissionais.

 

Caso sejam criadas turmas, possivelmente, serão com níveis mistos (A1, A2 e B1). Para além desta mescla de níveis de proficiência linguística, é bem provável que os alunos frequentem anos de escolaridade diferentes, pois a legislação prevê que “os alunos de PLNM (sejam) organizados por grupos de nível de proficiência linguística e não por ano de escolaridade, devendo seguir as Aprendizagens Essenciais de PLNM do respetivo nível, com adequação do processo de ensino, aprendizagem e avaliação à sua faixa etária.”

 

Como ensinar, num mesmo momento, alunos que estão a aprender a falar português e outros que já se preparam para realizar exames nacionais? Como ensinar simultaneamente alunos de A1 do 2.º ou 3.º ciclos e alunos, do mesmo nível, a frequentar o ensino secundário. Os materiais e as estratégias são, obviamente, muito distintos.

 

Caso não seja possível criar turmas, os alunos frequentam igualmente a disciplina de PLNM ainda que inseridos nas aulas de Português, podendo, adicionalmente, beneficiar de aulas de apoio de PLNM. Será que o legislador percebe a dificuldade de tal medida? Imaginem algumas situações:

 

(i) um aluno estrangeiro, que não fala uma única palavra de português, matricula-se no 10.º ano. Insere-se na turma de Português e tem apoio a PLNM. Para o professor de Português é difícil criar momentos de aprendizagem individualizados para este aluno, mesmo com a ajuda do colega de apoio à disciplina, que lhe fornece materiais de apoio e instrumentos de avaliação.

Havendo turma, este aluno de A1 do 10.º ano terá aulas com os seus colegas do 7.º do mesmo nível de proficiência e com outros dos níveis superiores, também de vários anos de escolaridade. É possível termos, numa mesma turma, alunos de seis anos de escolaridade diferentes, de três níveis de proficiência e de várias nacionalidades, com culturas muito distintas. Ensinar um hispano falante da América Latina não é igual a ensinar um paquistanês ou um alemão. Apesar de os professores procurarem implementar estratégias de diferenciação pedagógica, é difícil fazê-lo neste contexto.

 

(ii) um aluno estrangeiro que ingressa no nível A1, no 9.º ano, e frequenta a turma (ou disciplina) de PLNM, se atingir as Aprendizagens Essenciais desse nível, no 10.º ano, transita para o A2 e no 11.º, para o B1. Nunca frequentou a disciplina de Português. Todavia, embora lhe seja permitido realizar o exame de PLNM 839 (B1), terá de frequentar a disciplina de Português e ser avaliado na mesma, quando transitar para o 12.º ano. Prevê-se, nos normativos, que os alunos posicionados nos níveis de avançado (B2/C1) acompanhem o currículo nacional de Português, podendo, por decisão da escola, beneficiar de aulas de apoio no âmbito do PLNM.

Pela minha experiência, é quase impossível terem sucesso académico a Português. Acompanhei um aluno russo que, quando ingressou no B2, no 12.º ano, e passou a acompanhar o currículo de Português teve imensas dificuldades, sobretudo nos conteúdos de Educação Literária. Imaginem um aluno assim a ler Fernando Pessoa. Para além das graves lacunas vocabulares do registo denotativo, acrescem as sentidas no uso conotativo e figurado das palavras.

 

(iii) imaginemos, agora, que o aluno ingressa no nível A2, no 9.º ano, e frequenta a turma (ou disciplina) de PLNM. Se atingir as Aprendizagens Essenciais desse nível, no 10.º ano, transita para o B1 e no 11.º, para o B2. Não frequentou a disciplina de Português (no 9.º e no 10.º). No 11.º, tem, obrigatoriamente, de frequentar o B2, logo, o currículo de Português, tal como no 12.º ano. Nesse ano, fará exame de Português 639, no qual podem sair conteúdos de 10.º ano, ano em que o aluno não seguiu as Aprendizagens Essenciais de Português, mas as de B1. Confuso? Sim. Injusto. Com certeza.

 

Para além destas três situações, poderia elencar muitas outras. Não basta falar de inclusão para estes alunos, há que dotar as escolas de condições para a praticar.

 

Em suma, quem legisla deve rever, urgentemente, as diretrizes para PLNM: acabar com o número mínimo de 10 alunos para criar turma (já assim foi); caso haja turma de PLNM, deve-se repensar a frequência da disciplina de PLNM, em substituição da disciplina de Português, sem qualquer outra medida adicional (Os apoios são facultativos e adicionam muita carga horária aos horários, sobretudo dos alunos do ensino secundário. Estes alunos, regra geral, não frequentam apenas apoio a PLNM, mas a todas as disciplinas que o disponibilizem, pois têm dificuldades na compreensão escrita e oral dos conteúdos, devido às dificuldades na língua portuguesa.); reduzir o número de alunos por turma no caso das turmas em que estejam inseridos alunos de PLNM, para que os professores de todas as disciplinas possam acompanhar estes alunos, de um modo mais individualizado; atualizar os testes diagnósticos de aferição de nível de proficiência, bem como os materiais disponibilizados pela tutela; dotar as bibliotecas escolares de recursos e materiais atualizados e de elevada qualidade para o ensino de PLNM , mas, também, para apoio às outras disciplinas do currículo.

 

Apraz-me dizer, todavia, que os alunos estrangeiros com quem trabalho sentem que a maioria dos seus professores os procura ajudar a ultrapassar as suas limitações e se se preocupam genuinamente com a sua integração na escola.

 

PARDAL, L. et al. (2007). "Língua e integração: representações sociais de imigrantes", in ANÇÃ, M. H. (coord). Aproximação à língua portuguesa. Aveiro: Universidade de Aveiro.

 

Cristina Fontes