Erros deles, má fortuna de todos

Erros deles, má fortuna de todos

Por: Paulo Guinote

 

 

Para tratar um determinado problema, podendo usar uma doença como analogia útil, é indispensável ter um diagnóstico correcto do que se passa, pois só assim se pode encontrar o tratamento ou medicação que melhor se adequa a uma potencial “cura”. Claro que para que isso aconteça é muito importante ter recursos humanos com conhecimentos especializados e a devida competência para fazer o diagnóstico e não apenas gente curiosa acerca do assunto, com um determinado remédio para vender, independentemente das circunstâncias ou quem se esqueceu do que terá vagamente aprendido num tempo distante. Para além de que, como parece óbvio, antes de surgir o problema, deve existir a capacidade de o prever e prevenir, em especial nas suas versões mais virulentas.

 

Na área da Educação existe uma série de problemas por resolver, sendo que aquele que tem recentemente atraído maior atenção é o da falta de professores, em particular para substituir quem se vai aposentando ou quem, por questões de saúde, não está em condições de leccionar. Claro que não se trata de um problema imprevisível: as pessoas envelhecem a um ritmo linear e os problemas de saúde que acompanham esse envelhecimento não são algo estranho ou singular. É natural que, chegando à idade de se reformarem, as pessoas o façam. Assim como, perante as tendências dos últimos anos, também seria fácil perceber que existem pessoas que, atendendo às condições de trabalho que se degradam de modo constante, ou veem a sua saúde debilitar-se ou preferem antecipar a sua saída da profissão. Não por qualquer maldade ou intenções ocultas, mas porque disso necessitam para manter alguma sanidade, física ou mental.

 

Infelizmente, as instâncias que em Portugal têm a responsabilidade de acautelar estas situações e, em devido tempo, encontrar formas de as remediar, destacaram-se por uma aparente (já explicarei porque acho que só em parte é real) incompetência e uma evidente incapacidade para ir além de um conjunto de preconceitos de ordem ideológica ou nascidos de uma visão instrumental da política ou da investigação académica.

 

O que afirmo foi demonstrado de modo muito notório em alguns artigos de opinião recentes e num debate que juntou, já este mês, por iniciativa de um órgão de comunicação social, entre outras presenças, um governante (secretário de Estado) e um par de “especialistas” no tema, sendo que uma delas teve importantes responsabilidades no Ministério da Educação, na área da recolha e tratamento de dados estatísticos. Tivemos o governante a truncar factos, comparando habilitações para a docência no passado e as que agora se querem decretar, de forma distorcida, ao ocultar que há 30 ou 40 anos, aquilo que agora se quer passar por “habilitação própria” nem para “habilitação suficiente” daria.

 

De acordo com o relato do encontro, sobre um estudo sobre o impacto de algumas medidas em implementação, “o governante afirma ser impossível fazer uma previsão com o grau de precisão que a ANDE apresenta a não ser através da análise dos registos biográficos dos mais de 100 mil professores dos quadros. Esses são dados que nem o próprio Ministério da Educação detém” (Público online, 4 de Outubro de 2023). O que também é falso, tendo em conta os dados depositados, anos após ano, no sistema MISI@ e as funções da DGEEC ou do IGeFe.

 

Ainda tivemos direito a que quem teve como missão prevenir a evolução do número de docentes em exercício desde 2011, afirmasse que só deu por isso em 2019, quando alguém lhe pediu os dados sobre o assunto. Assim como tivemos como especialista em soluções para o problema quem, há poucos anos, negou explicitamente a sua existência. E ninguém presente no dito debate teve a capacidade ou coragem, talvez em nome de uma convivência pacífica (o representante dos dirigentes escolares e o professor que ali estavam) e potenciais exclusivos na divulgação de futuros estudos (quem moderou o debate), de dizer que o que estava a ser afirmado era falso, em termos factuais, e hipócrita, em termos de coerência política ou pessoal.

 

Cruzam-se, nesta aparente incompetência, duas ordens de interesses: do lado da política, o projeto de reconfigurar a profissão docente de acordo com uma lógica low cost de precarização e desqualificação académica e profissional. Professores precários, a quem um lugar qualquer é melhor do que lugar nenhum, são, nem que seja em tese, mais fáceis de domesticar e de dominar, seja pelas lideranças locais, seja pela tutela central. Do lado dos “especialistas”, com destaque para a área da Economia da Educação, em tardio desenvolvimento entre nós, existe o interesse por alimentar a necessidade de estudos sobre o fenómeno (apesar de mais do que conhecido) e sobre as “melhores” formas de o resolver, mesmo que hoje se desdiga o que ontem se afirmou com enorme certeza.

 

O problema maior é que, com especialistas académicos e decisores políticos que se deixam aprisionar por estes interesses ou oportunismos, um diagnóstico rigoroso não é possível, pelo que é bastante improvável que qualquer tratamento recomendado seja o adequado.

 

A Educação Pública está doente, mas quem tem a missão de a tratar tem outro tipo de agenda, muito distante de qualquer serviço público ou do tão falado “interesse dos alunos”. Infelizmente, os principais prejudicados pela falta de prevenção, pelo diagnóstico errado e pelos tratamentos ineficazes são esses mesmos “alunos” e a imagem progressivamente degradada de um dos pilares de um Estado que se queria Social.

Paulo Guinote