“PASSADO”
“PASSADO”
Por: Professor Miguel Borges
Parece-nos pertinente, para melhor entender o que foi e ainda é ser professor do 1.º CEB, em Portugal, assentar esta comunicação em palavras âncora.
“PASSADO”
Começamos com a palavra “PASSADO” porque para entendermos o hoje, temos que perscrutar o ontem. Em 1926, a frágil 1.ª República dá origem a um regime ditatorial que perduraria meio século. Uma das principais preocupações deste regime é a demolição do ensino primário republicano e a transformação da escola e dos professores em instrumentos doutrinários do Estado Novo. A Escola, sobretudo o ensino primário, torna-se uma agência de controlo e reprodução social e cultural. Obedecendo a um conjunto de normas cristalizadas e rígidas que deviam ser seguidas sem ser questionadas, para criar um sistema que valorizava a ignorância como fator de felicidade do povo. Como referia Virgínia de Castro e Almeida: “A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75% de analfabetos. Que vantagens foram buscar à escola? Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem e voltam à enxada”.
É neste contexto que emerge a criação da identidade de professor primário. Com um estatuto social dos mais relevantes nas comunidades. Estatuto concedido pelo poder central, para controlo ideológico e de difusão de valores doutrinários, que eram complementados pelos programas e livros de leitura. Era este o papel do professor: transmitir, sem questionar e sem permitir que se questionasse, um conjunto de dogmas, factos e ideologias emanados pelo Estado Novo, sem pensar nas perspetivas de futuro dos alunos, porque esse era certo: voltar à enxada!
“IDENTIDADE”
É nesse Portugal rural, em que o professor e o padre eram as figuras sociais de proa, que se forja a identidade dos professores de 1.º CEB: transmissores de conteúdos, disciplinadores, detentores do conhecimento e que tinham a imagem de aluno como a tábua rasa que era preciso esculpir. Quando não era possível o defeito era da madeira que compunha a tábua.
Esta identidade perdurou até ao final do século passado. Foi nela que se contruíram alguns professores e foi nela que outros tantos fomos alunos e, como refere Sérgio Niza, contruímos a nossa identidade profissional por isomorfismo. Ou seja, somos um pouco como eram os nossos professores. O problema da identidade profissional é, talvez, o maior problema dos professores do 1.º CEB. É que a sociedade e as crianças do século passado já não existem e se o país mudou muito no pós 25 de abril, mudou muito mais e vertiginosamente neste século com a generalização da internet.
Mudou a sociedade, mudou o sistema educativo, mudou a escola, mudaram as famílias, mudaram as crianças, tudo mudou… Mas os professores continuam a ter a mesma identidade que tinham no século passado. Entraram neste processo de mudança completamente desamparados, abandonados e com uma identidade cada vez menos nítida, cada vez menos compreendida. E isto percebe-se bem, quando vemos que os professores do 1.º CEB são o único grupo disciplinar que não tem uma associação profissional.
Para agudizar esta crise de identidade, no final da década de 80, do século passado, as Escolas Superiores de Educação começaram a formar professores do Ensino Básico, nas variantes de matemática/ciências naturais, português/inglês, português/francês, educação musical, visual ou física entre outras, cujos candidatos a professores tinham o sonho de lecionar as disciplinas nas quais se formavam. Ora, por vicissitudes do sistema, mais de 50% dos professores do 1.º CEB de hoje são formados numa variante e tinham como objetivo vincular no 1.º CEB para acumularem tempo de serviço e consequentemente graduação profissional para poderem lecionar no 2.º CEB. Continuam a lecionar no 1.º Ciclo.
Por tudo isto, percebemos a necessidade de reinventar a identidade de professor do 1.º CEB. E nessa perspetiva urge colocar o primeiro ciclo como educação de infância, ao invés de o tentar aproximar do 2.º CEB. Urge entender que a Educação Pré-Escolar, que tem feito um fantástico caminho, constitui-se hoje como a primeira etapa do sistema educativo e também do sistema de aprendizagem. A identidade dos professores do 1.º CEB terá sempre mais proximidade da identidade dos Educadores de Infância, pois partilha um mundo comum: a monodocência, o calendário escolar, as crianças, o processo pedagógico que se quer contínuo…
E este processo de construção da identidade do “professor primário” passará pelo RECONHECIMENTO social, que necessariamente terá de ter o primeiro passo na tutela. Começando por reconhecer a Educação de Infância como o período dos 0 aos 10 anos de vida. E, portanto, a Educação de Infância englobará a Educação Pré-Escolar e a primeira etapa da educação escolar: o 1.º CEB. Depois, terá de reconhecer a educação de infância como a etapa chave e primordial do sistema educativo porque o é na vida do Ser Humano. A investigação demonstra cabalmente que o sucesso nesta etapa é determinante no sucesso educativo, no sucesso escolar e sobretudo na formação de cidadãos preparados para a incerteza, mas sobretudo reflexivos e interventivos.
Será, no nosso entender, do reconhecimento da educação de infância como etapa primordial do sistema educativo que advirá o reconhecimento dos especialistas em educação de infância e consequentemente a construção de uma nova identidade profissional.
Para que este processo seja facilitado é necessário repensar a ORGANIZAÇÃO… As escolas de 1.º Ciclo precisam de autonomia e em vez disso vemos um sistema que lhe retira autonomia. Desde logo pela obrigatoriedade de os professores do 1.º Ciclo terem um horário disciplinar. Esta medida, além da promoção de uma metodologia prescritiva e transmissiva, aproxima-se da estrutura organizacional do 2.º Ciclo e, ao mesmo tempo, funciona como espartilho para os professores que trabalham metodologias participativas, que gostariam de trabalhar em metodologia de projeto, que promovem a aula invertida, entre outras… É percebida pelos professores como desconfiança da tutela. E é necessário confiar nos professores! Temos que entender que são os professores quem melhor pode adaptar o currículo nacional aos contextos locais. Uma escola do 1.º ciclo será sempre diferente em Lisboa, em Viseu ou em Chaves. E é nesta capacidade de trabalhar para o mesmo fim em contextos tão variados que reside a especialidade dos professores em monodocência. Mas isto requer confiança e autonomia.
Transversalmente a todos os grupos de docência, é necessário tornar a carreira estável. Terminar com as quotas de acesso aos 5.º e 7.º escalões. Dignificar a perversidade que é a avaliação de desempenho docente. A solução poderia ser simples. Se todos os escalões da carreira docente tivessem a duração de 4 anos e eliminando as bonificações decorrentes da avaliação de desempenho docente (1 ano por excelente e meio ano por muito bom) recuperava-se mais tempo do que aquele que visa a introdução de quotas nestes escalões. E o processo seria justo. É necessário alterar o sistema de avaliação de desempenho docente. Pois, é a maior perversidade do sistema educativo. Neste âmbito, chamaria as instituições de ensino superior, a investigação, a ciência e por cada escalão, os docentes teriam de frequentar, por exemplo, 100 horas, em 4 anos, ministrada pelas instituições de ensino superior, em articulação com o ME.
Organizacionalmente, parece-nos pertinente que todos os docentes participem na escolha das lideranças e na definição do projeto de intervenção que se quer para o AE’s. Parece-nos ainda importante que o órgão seja colegial e não nominal, pois só daí poderá advir a igualdade entre todos os docentes do mesmo Agrupamento.
A palavra “TEMPO”. Os professores em monodocência precisam de tempo! Tempo para ser professores. Tempo para sonhar! Tempo para envolver e chamar a participar! Tempo para a relação! Tempo para aprender e acomodar! Tempo para dar e colaborar! Tempo para diferenciar! Os professores precisam de ter tempo para fazer formação, para investigar, para conhecer, para partilhar, para aprender a avaliar, para se constituir em comunidades de partilha e aprendizagens, para poderem diferenciar pedagogicamente. A carga administrativa dos professores é, neste momento, um monstro que ensombra a paixão pela docência. As recentes manifestações de professores trouxeram à tona o imenso trabalho administrativo que os professores fazem diariamente e, geralmente, com pouco ou nenhum proveito para eles, para a escola e para os alunos. Mais uma vez, é necessário confiar nos professores para que possam colocar o processo pedagógico no centro das suas práticas. Todos os outros processos devem servir o pedagógico, em vez de o anularem. Para terem noção, hoje é melhor ser bom profissional na organização administrativa dos processos do que em sala de aulas e, podem estar seguros, que quem for melhor nos processos administrativos terá uma melhor avaliação de desempenho docente. É outra das perversões do sistema!
Também na gestão do CURRÍCULO urge confiar nos professores! E é imperativo que professores sintam essa confiança! É necessário dar-lhes autonomia e apoio! Neste sentido, a gestão pedagógica do currículo deve caber a cada um dos professores, que a deve fazer em função do seu contexto próprio: o grupo/turma, a meio local, as famílias, entre outros. É necessário que os professores tenham acesso ao conhecimento, ao que a investigação produz para poderem fundamentar e trazer qualidade e diferenciação às suas práticas. É imperativo que os professores sejam tidos em conta na reconstrução do currículo e é imperativo que tenham liberdade, ainda que condicional, na sua aplicação. Se isto for feito sairemos todos a ganhar! Reacender-se-á a paixão e a dignidade pela e na docência, ganhará qualidade o ensino e a aprendizagem e formaremos cidadãos preparados para a incerteza, que é a única certeza que as novas gerações têm.
É também de suma importância tratar os professores em monodocência com EQUIDADE. Um professor em monodocência trabalha semanalmente mais 6h40 minutos que os colegas dos outros ciclos, o que no final da carreira equivale sensivelmente a 18 anos de serviço. Como referiu o Sr. Primeiro-Ministro, na Assembleia da República, a descriminação laboral dos professores em monodocência é uma enorme injustiça social! Mais injusta se tornou quando em 2017 foi revogado o DL que previa um regime especial de aposentação para estes docentes. Como referiu António Costa, precisamos de um conteúdo funcional distinto que dignifique os professores monodocentes! Estamos todos de acordo! As palavras são bonitas, mas as medidas vão em sentido oposto: por norma, o calendário escolar é mais alargado para os Educadores de Infância e Professores de 1.º CEB, não têm reduções de componente letiva e têm horários menos flexíveis. Será que as crianças mais novas precisam de estar mais tempo na escola? Será porque são mais novas e aprendem a um ritmo mais lento ou será porque os profissionais são menos especialistas e não promovem o desenvolvimento ao mesmo ritmo? A estas perguntas de retórica respondemos com a necessidade de uma visão da educação de infância como o espaço temporal de primordial importância. Este devia ser o fator orientador das medidas emanadas pelo ME.
Precisamos de promover a organização da escola em função dos contextos onde prestam serviço. Em Portugal começam a surgir escolas em que as áreas centrais do currículo são trabalhadas de manhã, aproveitando a maior energia cognitiva das crianças, e articulando com as autarquias de modo a que as atividades de enriquecimento curricular sejam desenvolvidas na parte de tarde. Mas, mais uma vez, estamos a fazer isto um pouco à sorte!
É premente refletir os aspetos anteriormente mencionados, pois temos pela frente um conjunto de DESAFIOS de enorme envergadura. O maior dos quais é como atrair jovens para a profissão docente e, mais ainda, jovens que sejam os melhores alunos na fase que antecede o ensino superior. A solução passa inevitavelmente por todos os fatores anteriormente mencionados e pela valorização da carreira docente.
Para isso acontecer, em primeiro lugar temos de melhorar as condições de trabalho dos professores que já se encontram na carreira, que passa obviamente pela eliminação do sistema de quotas, pela recuperação do tempo de serviço, pela criação de uma avaliação docente clara, transparente e promotora do desenvolvimento profissional, pela revisão em alta dos índices de remuneração, mas sobretudo reduzindo cabalmente a carga administrativa e burocrática no exercício da docência. Colocando as funções pedagógicas no âmago do ser professor.
Em segundo lugar, melhorar as condições dos professores contratados, evitando que o sejam por mais de três anos, eliminando os horários incompletos e a contabilização na íntegra dos descontos para a Segurança Social.
Permitam-me que vos aborreça um pouco mais e vos diga que eu ainda sou do tempo em que um professor contratado que estivesse a trabalhar no último dia de maio via o seu contrato terminar a 31 de agosto, pois não havendo mais concursos estava impossibilitado de voltar a concorrer. Hoje, os contratos terminam quando os professores em substituição se apresentam, o que acontece geralmente após as reuniões de avaliação. E os professores contratados vão para os Centros de Emprego. Também passa por aqui a dignificação da profissão.
Termino com uma palavra: ESPERANÇA. Esperança no futuro: nos professores, nos decisores, nos pensadores… Esperança que estas reflexões mais longe! Esperança que a resiliência dos professores do 1.º CEB permaneça intacta e, que, em cada setembro, se renove o brilho no olhar de cada um e cada uma! Esperança de que estes Super Heróis não se cansem!
Obrigado, por me permitirem esta partilha!
Miguel Borges