Professora? Muito! Valeu a pena?

Professora? Muito! Valeu a pena?

Por: Professora Donzília Antunes

 

 

 

Era uma tarde bonita, amena, salpicada pelos coloridos das recém chegadas flores primaveris e enfeitada pelos primeiros cantos dos passarinhos lisboetas.

Estuguei o passo, ansiosa e expectante.

Há cinquenta anos que não entrava no meu antigo liceu. Emocionei-me ao subir a escadaria principal e ao percorrer os longos corredores onde tinham ficado pedacinhos de mim, bem como de todas as minhas colegas. As memórias começaram a brotar em catadupa e, quando me sentei no mesmo banco de madeira, tinha novamente quinze anos.

Enquanto aluna, fui educada e estudiosa, mas sempre irrequieta e um tanto difícil. Agora, professora, tentava compreender melhor os alunos problemáticos.

Hoje, a tarde era bonita, amena e, além disso, diferente. Neste liceu, atualmente escola secundária, desde 1978, fazia-se uma merecida homenagem à sua patrona e assaz esquecida, Maria Amália Vaz de Carvalho. Tinha ido dizer uns poemas desta escritora, multifacetada e à frente do seu tempo.

Vinha de coração cheio.

Sentada numa esplanada clara e soalheira, tentava não pensar. Apenas saborear o facto de estar. A evidência de ser. Fazia por mergulhar na natureza … quando te vi.

O coração acelerou. Bastante! (a sério?! Ao fim de tanto tempo?!)

«Não acredito!»

«Que surpresa! Como vais?»,

«Vai-se andando e tu?»,

«Também.».

Não sabíamos um do outro há um mar de anos e, inesperadamente, ali estávamos, olhos presos nos olhos admirados, coração preso no coração emocionado. Tanta coisa para contar!

Claro, aquela troca de frases da praxe e eis que lançaste, de rompante, a pergunta que, no fundo, já esperava:

- Então, miúda, valeu a pena?

Mais que sabia eu a que te referias …

Quando nos apaixonamos, queríamos ir para uma ilha deserta, só os dois. Prometemos estar sempre um para o outro… e estávamos. Mas, um dia, eu deixei de estar. Acabei o curso e experimentei dar aulas. Foi a descoberta de uma outra paixão. Envolvi-me de tal modo no ensino, dediquei-me tanto aos alunos e à escola, esforcei-me tanto para preparar aulas giras e interessantes, trabalhei tanto em casa, de noite e aos fins de semana … que não restava muita energia nem muito tempo para ti. Para nós.

Agora, querias saber se tinha valido a pena deixar para trás a vida afectiva e familiar pelo ensino.

Não soube responder-te. Pelo menos não logo. Assim.

Nunca tinha querido pensar nisso…

Considerando o que semeei nos alunos, sim, valeu a pena. Se considerar o que perdi de vida, de outras dimensões da existência … hesito na resposta.

Não sei se valeu a pena ter trocado o amor de/a um homem pelo amor aos alunos e ao ensino. São dois tipos de amor diferentes. Difícil comparar!

Não sei se fiz bem ou se fiz mal em investir tanto tempo e tanta dedicação naquilo a que chamam profissão e que, para mim, é, também, vida.

Apenas soube responder-te que fiz o meu melhor e com amor.

Acredito ter conseguido motivar, ensinar, formar, ajudar a desenvolver o gosto pela nossa maravilhosa língua e o interesse pelos nossos belíssimos escritores.

Acredito ter conseguido, muitas vezes, levar alegria aos corações e bem estar à sala de aula.

Acredito ter transmitido confiança.

Acredito ter ajudado.

Acredito ter contribuído para um mundo melhor.

Acredito ter feito diferença.

Acredito ter sido professora.

Sim, porque ser professor é tudo isto… e mais!

É um envolvimento inteiro, um trabalho nunca terminado, um enorme investimento didáctico, pedagógico e afectivo.

Ser professor é ser muito!

Ser professor é muita coisa!

Ser professor é nunca desistir de um aluno!

Ser professor é dar-se!

Sou professora e, apesar do cansaço extremo, de algumas amarguras pontuais e meia dúzia de desilusões, o que, convenhamos, é pouquíssimo, digo que valeu a pena!

Suponho que valeu a pena para os alunos e para mim.

Mas… espera! Espera!!

Fala-me do que se tem passado com os professores ao longo dos últimos anos.

Lembra-me, novamente, os seis anos, seis meses e vinte e três dias de tempo de serviço não contado.

Recorda-me as quotas e os anos que esperei para aceder ao sétimo escalão, apesar de ter todos os requisitos necessários.

Não me deixes esquecer, (por mais que eu queira, porque custa): a falta de respeito constante nas vozes ignorantes ou mal intencionadas de governantes, as calúnias e as mentiras nos discursos de políticos e (o que ainda dói mais!) A enorme falta de reconhecimento por uma parte da sociedade que servimos e cujos filhos ensinamos e… educamos.! Embora esta tarefa devesse pertencer aos pais, que muitas vezes, nem as regras básicas de educação transmitem.

Não deixes que olvide a crescente, desnecessária e estúpida sobrecarga de tarefas administrativas, que esmaga a vontade e mata a criatividade. (não será este um dos objectivos?)

Relembra-me que, com o ordenado (que quase não dá para as despesas), tenho de pagar toda a formação – obrigatória – e todo o material necessário.

Faz-me ter presente o tempo perdido na escola à procura de um espaço adequado para me poder concentrar e trabalhar.

Repete, para que não esqueça, a desvalorização, os ataques, os juízos de valor errados, os preconceitos e toda uma panóplia de injustiças que, durante as últimas décadas, têm vindo a aumentar e a ser praticadas contra a classe docente.

Tenho 66 anos de idade, 42 anos de ensino e estou prestes a reformar-me no sétimo escalão. Décimo? «viste-o!». Aos 120 anos, dez meses e sete dias… quiçá…

Relembra-me tudo o que eu preferia esquecer e pergunta, de novo, se valeu a pena.

Por tudo isto, irritada, dir-te-ia que não!

Mas … como esquecer tudo de bom que recebi do ensino, dos meus alunos e dos meus colegas, ao longo de tantos anos?

Como esquecer a realização pessoal, a sensação de ter sido útil e a consciência do dever cumprido?

Como esquecer os olhares iluminados, os sorrisos de ternura, as palavras de gratidão, ou aquele «stora, adorámos esta aula!», «queria ter português todo o dia!», «agora já percebi!», «fez-me gostar de português!»?

Como esquecer os milhares de momentos tão bons, tão compensadores, tão significativos, que se passaram nas aulas? Para os contar teria de escrever vários livros! 

Responder-te-ei, obviamente,

Valeu a pena!

A tarde despedia-se mansamente e o manto nostálgico da noite começava a estender-se pelo céu….

Era a hora de recolher, mas nós ficámos. Esquecemos as horas, a casa, a escola, os problemas e, pela primeira vez, em muito tempo, senti-me livre…

Estava disponível para ti. Para nós.

 

Donzília Antunes

Sócia SIPE